O Brasil, de continentais problemas e continuado sebastianismo pratica o anseio da solução irrefletida, miraculosa e sem esforço. O ‘abre-te Sésamo’ mágico, que, logo enunciado e aderido, se torna panacéia, de frustração certa. Assim é, por exemplo, quando se fala em educação ou cultura como soluções. Esquecemo-nos que ‘educação’ e ‘cultura’ podem ser meros rótulos que comportam conteúdos diversos. É preciso perguntar ‘qual educação’ e ‘qual cultura’ pretendemos. Assim também ocorre quando tratamos das conhecidas mazelas do nosso Judiciário. Também aqui urge indagar de qual ‘modernização’ falamos.
Há uma disputa em curso, mais que semântica, hermenêutica. E nessa arena de combate terçam armas guerreiros de pesos diferenciados. De um lado, a cidadania, que viu na Constituição de 1988 e diplomas legais conseqüentes, mecanismos de inclusão que flagraram os imensos passivos estatais de que era credora. Ocorre que a tentativa de Estado de Bem Estar, entre nós aportou tarde demais, na desfavorável conjuntura pós-queda do Muro de Berlim. E exatamente aqui surge o outro contendor. O capital internacional, liberado com o “fim da História” para vagar mundo em busca do menor custo e maior lucro. Para o cidadão, necessário justiça célere, que diminua a distância entre os direitos e o seu exercício. Para o capital, urgente reduzir o que considera ‘insegurança jurídica’, assim entendido qualquer mecanismo ou ação que lhe possa impor restrições. Ambos os discursos adotaram a epígrafe da ‘modernização’.
Disso resulta admitir que podemos fazer a ‘modernização para o cidadão’, em prol da consolidação em concreto de direitos de papel, ou a ‘modernização para o capital’, em favor de máquinas mais eficazes ao ‘status quo’. No primeiro caso se inserem tentativas como o incremento das Defensorias Públicas e a criação dos Juizados Especiais. No segundo caso, os esforços para, a título de aceleração processual, evitar surpresas nas decisões dos juízes, com a adoção de mecanismos de controle da magistratura e instituição das súmulas vinculante e impeditivas de recursos. Em ambos os modelos, maior ação gerencial do Juiz de Direito.
Há problemas graves em qualquer hipótese. No segundo caso, nitidamente corre-se o risco de se esterilizar aquele que olha nos olhos do povo, recolhendo o magistrado de primeira instância a um papel mais burocrático, do ponto de vista jurisdicional. E, nas duas propostas, o incremento da função gerencial, por impossível, como se verá à frente, traz igual resultado de prejuízos à prioritária atividade judicante.
Não ingressaremos aqui no debate sobre o cerco ao juiz na questão jurisdicional. Apenas quisemos situar o contexto, pela certeza de que, para uma modernização do Judiciário brasileiro que privilegie o fortalecimento da democracia, é preciso que se robusteça o arejamento jurisprudencial decorrente da ação do juiz de primeira instância.
Mas, mesmo em se tratando da questão administrativa, é preciso ter cuidados para que, por outra via, não se venha a promover os mesmos óbices à missão da jurisdição, desta feita pela imposição ao juiz de encargos administrativos onerosos, que estreitarão seus espaços de atuação judicante.
Por isso é que, se por um lado não é possível ao país seguir com o Judiciário como hoje funciona, a questão da modernização gerencial passa, necessariamente, pela rediscussão do papel do juiz nesse processo.
A realidade dos tribunais no Brasil faz ver a absolutamente imprópria acumulação de funções administrativas e jurisdicionais por parte do juiz. Ele é figura central da construção institucional. É autoridade e órgão de poder estatal, revestido de simbologias e sacralidades (sala de audiências, toga, capelo, martelo, etc) herdadas de séculos de construção civilizatória, desde os tempos em que os anciãos da aldeia recebiam veredictos diretamente da divindade.
Tamanhas reverências impõem superioridade e distanciamento, levando a que a maioria das pessoas não fique à vontade numa sala de audiências. E não se tem como desconstruir o mecanismo, até porque tornou-se essencial ao prestígio de um poder desarmado. Na seara processual, ao juiz cabe a última palavra.
O problema é que, chamado a incrementar a ação gerencial, o juiz, ainda que não acometido de ‘juizite’, para ela transporta todo o peso dos simbolismos que deveriam ser úteis apenas à jurisdição. A administração eficaz não existe onde não é possível participação e diálogo. O funcionário atemorizado, que somente cumpre determinações, sem entendê-las, sem engajar-se em finalidades, cumprirá mal suas tarefas, porque o fará apenas formalmente, em favor da burocracia e em detrimento da qualidade. Por isso, a criatividade e o espaço para a crítica e a construção solidária, são inafastáveis de qualquer esforço sincero de modernização gerencial.
Não se deve esquecer também a dificuldade decorrente da falta de vivência gerencial anterior e carência de preparo técnico específico. Em qualquer unidade de produção ou serviços, via de regra, alguém só chega a uma gerência após a prova de competências proporcionada por uma carreira ascendente. O sujeito sobe das funções primárias de execução às de supervisão, até a gerências intermediárias para, só então, alcançar gerências mais amplas. O mesmo ocorre quanto ao tamanho das unidades. O gerente da agência minúscula só depois de degraus intermediários (onde é avaliado), pode chegar à gerência da unidade maior. Isso tudo em paralelo com treinamentos específicos. Pois bem, pretende-se um verdadeiro milagre, quando se espera que o juiz - saído da faculdade de Direito após mourejar em estudos para o concurso e no individualismo da banca de advocacia – sem escalas, ascensão formadora ou preparo específico, vá bem ao receber, junto com a jurisdição a gerência de uma unidade de porte e complexidade como é um cartório.
Outro ponto relevante é que o juiz – mesmo que queira - não é, e não tem como ser, gestor no sentido clássico, apartado do sistema o bastante para encontrar o ponto de indispensável ‘super-visão’. Isto porque, peça de engrenagem, dele é exigida produção. À parte inaceitáveis desvios de conduta, e mesmo com o desconto de secretarias que os auxiliem, muitos juízes trabalham como operários, envolvidos num cotidiano de audiências, despachos, sentenças, colheita de testemunhos, etc. Para tanto - técnicos de alta performance que devem ser - são impelidos ao estudo incessante e continuado. Por óbvio, o tempo que lhes resta é, necessariamente, restrito para que possam se ocupar da função gerencial.
Portanto, é um erro grave pretender que o juiz de direito seja o móvel principal da modernização gerencial. Há obstáculos de cunho psicológico/simbólico e obstáculos práticos. Qual seria, então, a solução?
Primeiro é necessário mudar mentalidades em todo o quadro funcional dos tribunais. A função gerencial deve ser reconhecida e partilhada, separada da função jurisdicional. Sem prejuízo do incremento da figura do escrivão como gerente de unidade, é preciso que todos os funcionários pensem a questão administrativa, tornando-se ativos e participantes. Para tanto, é necessário motivação e preparo. Os tribunais deveriam estimular e premiar a participação dos escalões de base, massificando conhecimentos básicos como técnicas de reuniões produtivas, técnicas de solução de problemas e técnicas de organização e métodos, além de conceitos mínimos sobre trabalho em equipe e qualidade total.
Ressalve-se que o sucesso da indispensável missão de revolucionar consciências depende do soldado motivado. E para isso é necessário o comandante íntegro. Os atuais escândalos, se não podem ser tidos por regra, certamente abatem o moral da tropa. O massivo engajamento só ocorrerá quando o exemplo vier de cima, de direções de tribunais exemplares, engajadas, à margem de escândalos. Com autoridade moral poderão disseminar motivação interna, em campanhas bem planejadas e executadas, ‘mutirões’ de convencimento com eventos, palestras, cartazes e panfletos internos. Sabendo-se que mutirão é ação entre iguais. À beira da laje a ser ‘batida’ doutores deixam seus títulos para perfilar com serventes e pedreiros na busca do bem comum.
Também imperiosa necessidade é promover-se a efetiva profissionalização do processo gerencial. Neste particular parece inevitável a instituição de quadro gerencial e de assessoria voltados exclusivamente para a tarefa administrativa, inclusive em escalões inferiores. Sabe-se que existem experiências (alguns tribunais americanos, por exemplo) de gestão apartada da jurisdição. Não haveria prejuízo à posição de supremacia que o juiz ocupa no sistema, na medida em que poderia seguir à frente das decisões de cunho estratégico. Mas o dia a dia da gestão estaria em mãos de profissionais administrativos. Evidente que estes só atuarão bem se cônscios das peculiaridades da jurisdição e da necessidade de interação entre os protagonistas.
Portanto, do juiz não se deve tirar ou limitar a jurisdição, tentando obrigá-lo à mera gerência. A boa modernização, em busca de um ‘Judiciário Cidadão’ passa, ao contrário, pela especialização da atividade administrativa, pela motivação funcional, pela mudança de mentalidades e pelo fortalecimento do papel judicante do magistrado de primeira instância.
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Serventuário de Justiça do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, http://denilson_araujo.blog.uol.com.br/
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DENILSON CARDOSO DE ARAúJO, . O Papel do Juiz de Direito na Batalha contra a Morosidade no Judiciário Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 jan 2009, 10:16. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /16502/o-papel-do-juiz-de-direito-na-batalha-contra-a-morosidade-no-judiciario. Acesso em: 28 dez 2024.
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